Saturday, December 29, 2007

O riso dos tradutores (Jorge Silva Melo dixit)

Uma bela homenagem aos tradutores, por quem sabe e sente como nós...

Crónica "O riso dos tradutores", publicada no jornal Público de 31 de Maio de 2003, na rubrica Fora de Mercado


"Eureka!", proclamam e, a meio da noite, correm pela casa e, se pudessem, pelas ruas. São assim, Arquimedes, infantis, os tradutores. Eu gosto de os ver, enfronhados em dicionários, velhas edições, sabendo que é provisório o seu trabalho, riscando provas, consultando especialistas (o Jaime Rocha na Federação do Boxe, eu, na Portugália, a ver nomes de vasilhame, o José Lima a conferir comigo títulos de peças...), maníacos com as formas de cortesia (como agradeceram ao prof. Cintra a sistematização que publicou nos Livros Horizonte), comprando os mais estranhos instrumentos ("tenho um dicionário de termos náuticos!", diz-me o António Gonçalves, tradutor de Torrente Ballester, "mas fartei-me de telefonar para o Museu", "um dicionário de 'argot' raro e isso não vem", queixava-se o Manuel João Gomes), dedilhando impossíveis contagens e elisões (o Manuel Resende e o seu nunca por demais louvado "Coriolano") e a descoberta de erros ("no original, havia gralhas"/na Pauvert, não traduziram as dificuldades, saltaram..."/"o autor esqueceu-se, ela estava grávida há dois anos e ainda não teve a criança?"), conhecendo como ninguém as voltas da escrita.

Às vezes entristecem, depois de dúvidas doridas, encolhem os ombros ("maldita polissemia, olha, fica um dos sentidos") ou resignam-se a notas que logo fenecem. Num Mailer que ali tenho, "Praia da Barbaria", de 1961, Rui Costa precisou de pôr uma destas desprezadad notas para "cafetaria" ("misto de café e 'snack-bar' muito frequente nas cidades americanas", acrescentou ele para nós, que só sabíamos do copo de três no Val do rio).

E gritam de fúria com as gralhas. Tremia-lhe a voz, ao Francisco Frazão ao ver a sua tradução do "Primeiro Amor" metida na ortodoxia da pontuação pelas vírgulas e pontos com que iletrado revisor polvilhou o fraseado oblíquo de Beckett.

Mas não esqueço o riso do Francisco ao descobrir que "cenoura albina" pode ser "pastinaga". o que ria ele e o Miguel Borges ao encontrarem "procrastinar". O que a Luiza Neto Jorge ria, no café da Mata da Caparica, anotando o seu Verlaine inicialmente publicado na &etc. e agora na Assírio ("Hombres"), o que ela ria com as maroteiras com que torneava as dificuldades da linguagem pornográfica do Virgem Doida. O que ríamos com as descobertas que fez na "Salada Cómica" de Karl Valentin. O que ainda ri o Vítor Palla ao falar-me ao telefone da sua espantosa tradução do Damon Runyon: "Isso foi uma paródia de amigos." O que ainda ri o Artur Ramos ao lembrar-se de como o José Palla e Carmo lhe traduziu o "Tango des Abattoirs" de Boris Vian: "Já estou farto de beijos/de desejos/de despejos/passa a aguardente/já estou farto de ser hetero/com mulheres/a quilo/a metro/passa a aguardente."

E como gostam de partilhar as descobertas. "Sabes como fiz?" Olhem-me este "mail" de Alessandra Serra, a tradutora italiana de Pinter, acerca do "Sarilho as Obras", com a sua temível enumeração de ferramentas que nenhum AKI satisfará: "Fuia a uma enciclopédia, à voz 'hidráulica' e pus-me a inventar a partir daquelas palavras, tentando manter-me dentro do tema. Faz isso e vais ver que te divertes."

Por isso gosto deles, do sorriso da Fernanda Pinto Rodrigues, lembro-me tão bem da sua claridade num programa de televisão, quando é que a sociedade civil a levará lá de novo? E exultei quando Zita Seabra me descobriu na Bertrand o Salinger traduzido pelo Sttau e o Vasco Pulido Valente (reedição, já!).

E todo eu tremi, no outro dia, ao descobrir numa gaveta as primeiras 17 páginas da "Andrómaca" de Racine que a Luiza ia traduzir: "Pois quê? A vossa ira ainda é persistente?/Pode odiar-se tanto?/E castigar somente?"

Um desejo para a Feira que abre agora: esgotem as "Novas Impressões de África" do Raymond Roussel (Fenda) na tradução da Luiza Neto Jorge, esgotem-na e tenham-na, como eu tenho, desde o dia em que a Luiza morreu, à cabeceira.

Para não pararmos de rir com a Luiza o seu maravilhoso riso sibilino.

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