Thursday, January 12, 2006

Resposta a questionário DaLiteratura

Questionário

Um daqueles amigos raros com maiúscula e sem reticências, mas sempre disponível com um parágrafo–travessão sincero lançou-me, via blogosfera, este repto sobre as minhas preferências livrescas que, desde já, aceito com todo o prazer, embora a desoras (como o coelho da Alice).

1. Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?

Dentro da minha tradi(u)ção anglófona escolheria, de imediato, e sem pensar muito, uma das tragédias de Shakespeare (“Hamlet”, por exemplo), mais dois “clássicos” (não contando com o clássico dos clássicos, o Magnum da Olá, delicioso a qualquer hora e a qualquer lugar), a saber: o “Ulisses” do Joyce e “The Wasteland” do Eliot. Naturalmente, é claro, com “arroz do mesmo”, ou seja, acompanhados pelas respectivas traduções, e por ordem de entrada em cena, António Feijó, João Palma-Ferreira e Gualter Cunha. Porque, tal como tantas vezes disse a propósito de outros assuntos mais prosaicos, está (quase) tudo lá. E porque tantas vezes me socorro desses excertos à deriva, tão verdadeiros, quanto actuais, nestes tempos de desassossego que nos corroem a alma e cansam o espírito: “These fragments I have shored against my ruins.” Ou ainda "Life is a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing."

2. Já alguma vez ficaste apanhadinho por uma personagem de ficção?

Depende. As minhas afinidades mudam conforme os tempos, os contextos e os humores. Tal como o J.P., identificava-me bastante com as personagens dos livros da minha infância e juventude. Comecei por gostar do Noddy pela sua inocência e ingenuidade. Confesso que ainda hoje releio com prazer esses livros à minha filha. Gostava muito do David e do Júlio d’”Os Cinco”, porque me transmitiam uma sensação de maturidade precoce noutros tempos de saudável inconsciência. Nessa vasta rede de cumplicidades mais adultas integraria ainda o já falado comissário Maigret e o incomparável senhor Hulot. Ou ainda o grande Peter Sellers, com ou sem pantera-cor-de-rosa. Na minha galeria de memorabilia há também um lugar especial para o inspector Harry Callahan, o 007 e “last, but not least” esse magnífico John Wayne, pugilista reformado em ”O Americano Tranquilo”. Ultimamente, mas por outras razões, fiquei rendido às aventuras e desventuras do pobre Eneas McNulty, protagonista do romance “As Atribulações de Eneas McNulty”, da autoria de Sebastian Barry.


3. Qual foi o último livro que compraste?

Para além daqueles enfadonhos livros técnicos que utilizo, por necessidade, para a minha investigação, docência e/ou prática profissional (noblesse oblige), o último livro “desinteressado” que comprei tem o título bastante original (pelo menos, para mim) de “A Tradução” e é da autoria de Pablo de Santis (colecção Pequenos Prazeres, ASA). Sob a forma de um policial, trata-se, na sua essência, de uma pequena e curiosa reflexão metafórica sobre a tradução e a interpretação em geral. Leve e descomprometido, portanto.

4. Qual o último livro que leste?

Por prazer ou por necessidade/contingências profissionais? Ultimamente, os livros que leio são aqueles que traduzo e/ou revejo por obrigação, e com os quais me identifico e envolvo até ao limite das minhas forças. Esgotam-me, despertam-me sensações ambíguas, tipo amor-ódio, e por isso estabeleço fortes laços afectivos com todos eles. O último, por exemplo, é um romance histórico/policial centrado na figura de um faraó egípcio.
Satisfeito, satisfeito, fiquei com a leitura de um brilhante ensaio sobre o papel da tradução num contexto global, da autoria de um dos meus académicos favoritos, Michael Cronin. Chama-se “Translation and Globalization” e aconselho-o vivamente a todos os interessados nestas matérias.

5. Que livros estás a ler?

Pois, ando a ler muitas coisas ao mesmo tempo, como sempre. Trabalhos, textos académicos, artigos científicos e monografias. E, para além disso, o tal livrinho da ASA sobre a tradução, as Memórias de Adriano da Yourcenar, e os poemas da Ana Luísa Amaral, sempre presentes na minha biblioteca de abrigo. Não esquecendo, é claro, uma banda desenhada (Tintin ou Astérix) ao deitar para descongestionar as meninges.


6. Que livros (cinco) levarias para uma ilha deserta?

Pois, isso depende. Se estivesse a traduzir ou a rever algo, levaria o inevitável portátil e rezaria a todos os santinhos para que a bateria acabasse (o que, tendo em conta o equipamento que tenho entre mãos, seria coisa para demorar aí uns 2 minutos). Tirando isso, era capaz de levar aqueles livros que fazem parte da minha lista de obras a ler, mas que, como nunca tenho tempo, ficam sempre adiadas sine die para outras calendas, e que, por isso mesmo, integram essa longa listagem de resoluções para qualquer ano novo. À procura, quem sabe, de outros tempos mais tranquilos, espécie de conta-poupança-reforma-literária pessoal e intransmissível para a minha aposentação. O primeiro de todos seria, ironia das ironias, o Robinson Crusoe”, "for the fun of the thing". Levaria também a Odisseia de Homero, o Ulisses do Joyce e “À procura do tempo perdido” do Proust. E levaria também esse pequeno guia de sobrevivência “Around the world in 80 days”, da autoria de Michael Palin ou a autobiografia recém editada dos Monty Python, “The Pythons' Autobiography By The Pythons”. E, já agora, não me poderia esquecer dos dois volumes que retratam e fixam no papel essa saudosa e inimitável experiência radiofónica do “Pãocomanteiga” (exemplares que, entretanto, me foram surripiados nos idos de 80 por mãos amigas). E ainda a mais recente colectânea de poemas da Ana Luísa Amaral, “Poesia Reunida”, para me lembrar da simplicidade das pequenas coisas que se vai perdendo por aí. E por me obrigar a reeducar os sentidos.
(Sim, já sei que são mais de cinco, mas a dificuldade está na escolha).

7. A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?

Gostava mesmo de contar com a cumplicidade e a opinião sincera e amiga da AGM, da AMC e do RCH.

Tuesday, January 03, 2006

Maldita língua que me turva o sentido

Pois é. Bloga que se faz tarde.
Ano novo, velhas manias. Tradição, tradução e, sobretudo, revisão, cada vez mais revisão. Os meus dias são um processo de revisão constante. A lápis, caneta, marcador ou em ambiente multimedia hiperventilado por um CPU ofegante. Revisão dos outros, revisão desse outro que se esconde no texto, numa reescrita constante. Track changes, detectar e registar alterações e comentar, anotar, pormenorizar, detalhar e classificar. Tudo com um olho clínico, para o qual não fui treinado, mas que cada vez me incomoda mais... Para o bem e para o mal, até que essa coisa nos separe. No bom sentido, é claro, espécie de "all seeing eye", omnipotente e omnipresente que me impele rumo a essa ânsia de tudo dissecar.
(Engraçado, mas nunca de mim... Essa revisão, entenda-se). Às vezes, (agora, por exemplo)apetecia-me era deitar-me no meu divã e rever-me a mim próprio, egoísta, reescrevendo-me e redescobrindo ou fixando as minhas trajectórias (ou os meus escritos, entenda-se, a propósito). No fundo, vendo-me do outro lado, ou então do mesmo lado, ou ainda do lado de cá, como se queira, sem efeitos, nem trejeitos. E, sobretudo, sem preconceitos.
Ah, e sempre esta necessidade de tudo perpetuar, prolongar o dito e o escrito, numa luta constante contra o esquecimento. Não esquecer: Pôr a escrita em dia. Com rigor, precisão e minúcia. Por isso, escreve, unifica, concretiza as tuas ideias, revisor amigo. Vê se dás uma nova sintaxe à tua vida. "Hammer your thoughts into unity", dizia o outro e com razão. Bate, rebate, martela, cinzela, burila e, sobretudo, parte, desfaz essa pedra em bruto (e às vezes tão bruta) que tu encontras pelo caminho. Eis chegado o momento de solidificar e concretizar. Criar a partir do nada. Ou, melhor dizendo, criar a partir de fragmentos aparentemente autónomos, ligados entre si por um ténue fio vital, fiel e condutor.. Por isso, tonifica e constrói de novo, a partir dos despojos e resíduos do teu ser (sólidos, sob a forma de palavras e de uma sintaxe quebrada), mas também emocionais, mentais, intelectuais e conceptuais, reconstruindo-te a ti próprio, mergulhado nessa manta de retalhos de emoções e sensações que cada novo texto desperta em ti.
Trabalho hercúleo esse de rever. A revisão é, para mim, uma das mais nobres artes e tambem uma das menos exploradas neste imenso processo a que damos o nome de tradução. E, por isso, também uma das mais esquecidas e negligenciadas. Razão tinha o Pedro Mexia nas suas habituais crónicas na Grande Reportagem.
Isto porque a revisão é também uma outra visão, ou uma nova visão: re-visão. E é assim que revisito os espaços e os momentos do outro, desse tradutor que me antecedeu. Mas também os seus escritos, já não a duas, mas sim a quatro ou a seis mãos. Ui, e às vezes são tantos. "Todos ao burro e o burro no chão", como diz o povo. Eu, revisor, ele, tradutor, e o autor, que grita e e gesticula, mortinho por chegar a casa. Ou a um porto seguro. Ou quem sabe, tão só, fazer-se entender. Comungar e partilhar do mesmo sentido e das mesmas ideias. Será assim tão difícil? "Entendam-me", grita ele desesperado, gesticulando do outro lado da página. São tantos os sentidos que se acumulam. É tanta a imensidão de referências e referentes. E as palavras que não ajudam. Às vezes, só parecem estorvar. E a língua que tudo complica. Sintaxe pesada, resistente, barroca, que se dobra e desdobra. Lixo? Desleixo? Estilo? Há tantas coisas que se escondem por detrás dos sinais mais óbvios. E, às vezes, as rectas que percorro para chegar a ti, já são curvas, turvas de sentido, sinuosas e frágeis, numa rota ébria que, inexplicavelmente, se desviou do seu destino por mãos pouco cuidadosas. Palavras tresmalhadas e sintaxe transviada. Trapalhadas e alhadas em que o revisor se mete. Difícil tarefa essa de emendar aquilo que já nasceu torto. Não por obra do autor, é claro (mas às vezes, e sobretudo dele). Velhas questões essas sobre o mau original e a boa ou má tradução. Sim, porque há outra vida para além da chamada tradução literária. E há outra vida para além da literatura. Essa é uma das minhas vidas, esse é um dos meios e meandros por onde me perco e onde tantas vezes me encontro com a satisfação única de um renascer. Prazer supremo de descobrir a simplicidade de um pensamento ou acção nas palavras dos outros e dizê-lo com toda a energia e vigor na minha própria língua, pelas minhas próprias palavras e, assim, cunhar uma ideia, sentido, emoção no espírito dos meus leitores...