Sunday, October 10, 2004

Como areia, por entre os dedos

Desconcertante a forma como o sentido nos parece fugir por entre os dedos quando iniciamos uma nova tradução ou revisão.
O texto parece escorrer como areia e foge, plástico e multiforme como mercúrio. Dir-se-ia que Mercúrio ou Hermes passou por ali, baralhando sentidos, semeando a discórdia, abrindo brechas, dando-se à plasticidade da palavra e à fixação pela escrita.
O texto dobra-se e desdobra-se em múltiplos sentidos, numa catadupa intensa, voraz e fluído, rebelde e inconstante. Leibniz e Deleuze cruzaram-se ali numa dobra de sentido.
E a tarefa do tradutor é mesmo essa. Fixar o sentido, parar o tempo do texto, escutar a sua respiração, o seu palpitar, os seus murmúrios. Mas o sentido foge, ainda e sempre. E as palavras amontoam-se em sintonia, umas atrás das outras, com o labor de um artesão, artífice, plástico, mago, profeta, juntando e somando sentidos, descobrindo relações e consanguinidades, sempre à procura do termo certo, o eleito entre os demais.
Mas o texto cresce e continua o seu curso, rebelde, incontido. Somam-se as palavras, colam-se sentidos, fixa-se a sintaxe, adivinha-se a semântica... Plasticidade é a palavra que me ocorre, a capacidade de moldar e trabalhar esse material tão dinâmico e inquietante.
Por isso, avanço, recuo, volto a avançar e retrocedo, corto, apago, acrescento, adiciono, reformulo e condiciono, o sentido é o meu farol, a sintaxe o meu limite e espartilho, a palavra a minha luz.

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