Monday, March 16, 2009

O Leitor, esse (des)conhecido

Porque nos toca a todos, aqui fica um artigo da autoria da colega Maria Luísa Malato Borralho, docente na FLUP, e publicado no "Público"

A TORRE DE BABEL:
O ESTATUTO DE LEITOR NA UNIVERSIDADE PORTUGUESA

O Leitor é, para quem o desconheça, o professor que, nas Universidades portuguesas, ensina línguas vivas. Por muito estranho que pareça, o professor de línguas vivas não é um professor universitário como os outros. Ao contrário do que legitimamente sucede com quem ensina grego ou latim clássicos, o docente que ensina alemão, espanhol, francês ou inglês não tem enquadramento senão como “pessoal especialmente contratado”. Tal categoria abrange somente casos excepcionais a que se acede por convite. Assim, na prática, o actual Estatuto da Carreira Docente Universitária teve para os Leitores alguns “efeitos colaterais”:
a) associou e associa a categoria de Leitor ao ensino das línguas vivas;
b) vedou e veda aos Leitores estrangeiros (inclusive aos cidadãos da UE) qualquer progressão na carreira académica – tal disposição viola claramente o número 2 do artigo 39.º. do Tratado de Roma, relativo à liberdade de circulação de trabalhadores;
c) obrigou e obriga os docentes de línguas vivas a assinar regularmente um contrato inicial por um ano, renovável sempre por três, sem que algum dia tenham possibilidade de conseguir um melhor contrato ou qualquer outra forma de vínculo contratual por parte da entidade empregadora;
d) incentivou e incentiva as provas académicas de todos os outros membros (inclusive de Assistentes convidados e Monitores), mas desmotivou das mesmas o Leitor (quase sempre trabalhador estrangeiro), que continuaria sempre Leitor, tornando-o o elo mais frágil de toda a função docente nas Universidades. Em consequência, o Leitor é hoje despedido, independentemente da qualidade dos serviços prestados à Universidade Portuguesa, unicamente porque pode ser despedido.
Este sistema pressupunha uma sociedade em que os empregos eram estáveis, os regimes gerais de trabalho em dedicação exclusiva, ou em tempo integral, e uma legislação que protegia o trabalhador nacional em detrimento do estrangeiro. Também a fragilidade contratual do Leitor não sobressaía da dos restantes colegas. A carreira universitária é quase a única (quer no direito da função pública quer no direito do trabalho) em que a progressão se faz exclusivamente por provas e concursos públicos e nela só se pode ter o vínculo da nomeação definitiva, depois de passados 2 anos na categoria final da carreira (como professor catedrático) ou 5 anos na categoria anterior (a de professor associado).
Ainda há muito pouco tempo, 75% dos professores universitários não tinham nomeação definitiva. Ora muita coisa mudou entretanto neste contexto frágil e tranquilo. Tornou-se frágil e sobressaltado. Os 75% referidos serão hoje menos, porque muitos foram sendo despedidos e outros terminaram as provas académicas. Assiste-se hoje a uma revolução calada nas universidades e todas as revoluções (sobretudo as caladas) são darwinianas, cruéis para os seus membros mais fracos, aqui, os leitores, impondo-se a fraqueza contratual à importância dos leitores no equilíbrio do ecossistema universitário. Hoje, o Leitor, nas universidades portuguesas, não conhece limites para o trabalho que tem de aceitar. Os seus contratos passaram a ser renováveis anualmente, apesar de estarem há décadas a ensinar na instituição. O Leitor pode ser despedido porque não tem doutoramento, como pode ser despedido apesar de ter doutoramento. Dá aulas na licenciatura, mas (até porque as licenciaturas em línguas se reduziram invariavelmente a três anos) também agora de mestrado, quando não seminários de doutoramento, mas sem as garantias ou direitos que ainda assim possuem os restantes colegas. Mais exemplos haveria, até porque o Leitor serve para tudo e a quase nada vai tendo direito. Porque ensina línguas vivas. Porque é Leitor. Porque daí não pode sair, como sucede a algumas castas.
Num quadro em que os alunos chegam à Universidade com tantas deficiências na aprendizagem de línguas estrangeiras e simultaneamente se pede a estas instituições que preparem professores, tradutores ou intérpretes em apenas 3 anos, os leitores são insubstituíveis. A questão dos Leitores é pois científica, jurídica e económica. Que professores e que profissionais se poderão formar com qualidade, capazes de competir, no mínimo, num contexto europeu? Talvez o estatuto de Leitor possa vir a ser substituído com vantagem pelo recrutamento de Santos, de preferência Milagreiros, que ficam ainda mais económicos. Talvez se pense que é até vantajoso transformar todos os docentes em Leitores. A avaliar pelo que tem sucedido aos Leitores que deixaram a Universidade, não.
A educação é, além do mais, do ponto de vista económico, um negócio estranho. Como todo o pai sabe, o negócio demora dez, vinte anos a dar frutos que se vejam. Depois, investe-se o dinheiro numas coisas e os lucros surgem de outras. E quem investe não é nunca quem recebe.
O mundo é uma Torre de Babel. A Universidade é uma das poucas instituições que tem como propósito maior garantir a compreensão entre os indivíduos. E os Leitores uma das suas maiores armas.
Maria Luísa Malato Borralho
Professora associada com agregação
(Faculdade de Letras da Universidade do Porto)

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