Thursday, March 12, 2009

O Bom, O Mau e o Vilão: Ainda a propósito do Magalhães




'"Dirije o guindaste e copía o modelo" ou “Puxa e Larga uma peça por vês” são algumas frases com erros de português que podem ser lidas nos jogos didácticos e que são facilmente detectadas por crianças.
O problema terá ocorrido na tradução, que segundo o Expresso foi feita por um emigrante português, que vive desde os 10 anos em França e que só tem a 4ª classe.'
in Sic Online, disponível em
http://sic.aeiou.pt/online/noticias/pais/Erros+de+portugues+em+jogos+do+Magalhaes.htm

Ou ainda

1 - O Tux escondeu algumas coisas. Encontra-las na boa ordem.
2 - Dirije o guindaste e copía o modelo.
3 - Pega as imagens na esquerda e mete-las nos pontos vermelhos.
4 - Primeiro, organiza bem os elementos para poder contar-los.
5 - Quando acabas-te, carrega no botão OK.
6 - Abaixo da grua, vai achar quatro setas que te permitem de mexer os elementos.
7 - Com o teclado, escreve o número de pontos que vês nos dados que caêm.
8 - Tens a certeza que queres saír?
9 - Aprende a escrever texto num processador. Este processador é especial em que obriga o uso de estilos.
10 - Quando o tangram for dito frequentemente ser antigo, sua existência foi somente verificada em 1800.
[Fonte: Expresso]
in A Terceira Noite, disponível em http://aterceiranoite.wordpress.com/2009/03/10/magalhanes-em-10-licoes/


Lamento voltar ao assunto, mas há ainda umas coisinhas que precisava de esclarecer sobre isto.
Sei que corro o risco de tornar o assunto uma questão pessoal, estilo cruzada, mas há algumas verdades e constatações que podemos tirar de toda esta novela. Vejamos, portanto:

1. Afinal havia outro... como diz a canção.
2. Afinal a tradução já não terá sido apenas feita por um programa de tradução automática, mas sim por um humano. Óptimo, a continuidade da espécie humana está aqui assegurada.
3. É óbvio que havia necessidade de se encontrar um bode expiatório humano...
4. É óbvio também, e por muito que se diabolize a tradução automática, que aqueles erros jamais terão sido todos feitos por uma máquina ou programa informático.
5. A tradução automática é péssima, é claro, mas os erros que, normalmente, encontramos são de natureza semântica e sintáctica, e não tanto do foro morfológico, morfo-sintáctico, gramatical, whatever lhes queiramos chamar.
6. Daí, o elemento humano, homem/mulher... agente introdutor e validador do erro ou da asneira...
7. E, neste filme, o humano teve o azar de ser português, emigrante e a 4ª classe.
8. Sinceramente, tenho pena que este homem seja o elo mais fraco, como disse antes, desta perversa cadeia de transmissão do conhecimento associado a um bem de consumo.
9. E tenho pena que o humano seja, neste caso, crucificado ou, melhor ainda, exposto e sacrificado na praça pública, anónimo e "visivelmente invisível", personificando/encarnando na perfeição tudo o que de mau está associado à tradução.
10. Uma verdadeira homenagem ao "incompetente desconhecido". Perdoai-lhe, pois, já que a culpa não é sua. Uma coisa é ignorância; outra coisa, é incompetência.
11. E, no entanto, literalmente achincalhado, pejorativamente classificado como "emigrante" e "apenas com a 4ª classe", epítetos que toda essa gentinha "cobardemente correcta" usa e abusa para mostrar a sua alegada superioridade intelectual, moral, económica, social... "sacudindo, assim, a água do capote"...
12. Ser emigrante ou imigrante não é sinónimo de incompetência e falta de qualidade. Nem sequer um factor necessário para a análise qualitativa da tradução. Os tradutores são bons ou maus, não são emigrantes, nem cidadãos de primeira ou de segunda.
13. Ter a 4ª classe não é necessariamente sinónimo de tontice e boçalidade. Conheço muito boa gente com a 4ª classe que tem um discurso, inteligência e sensibilidade muito superiores aos senhores do Ministério da Educação e aos CEOs desse tão fantástico gigante do sucesso, a JP Sá Couto, verdadeiros responsáveis por este verdadeiro auto-de-fé em praça pública. De novo, uma coisa é ignorância; outra coisa é incompetência. E, neste caso concreto, graças a estes senhores, estamos perante um caso de lesa ______ (preencha o leitor o espaço em branco, por favor)
14. Porque o que está aqui verdadeiramente em causa é a tradicionalmente desastrosa política do "chico-esperto", cultora da incompetência, ganância e total falta de escrúpulos. Incompetência pura...
15. É claro ainda que, em última instância, todo este enredo revela a trágica situação de uma actividade nobre e honesta, a que muitos chamam (ou chamaram) "tradução", "mediação", "intermediação", "interpretação", seja lá o que for. E que agora chamam "localização", "engenharia de línguas", "indústria das línguas", "prestação de serviços de tradução"...
16. Ofício nobre e honesto, porque nele convergem valores e saberes que acompanharam e acompanham o Homem desde o início dos tempos. Valores de respeito, tolerância, ética, abertura ao "outro", diálogo, ligação, convergência, construção de pontes... era capaz de estar aqui a noite inteira a enumerar uma lista de conceitos que associo (ou associamos) ao labor/ofício/actividade/negócio da tradução.
17. A tradução não tem de ser necessariamente uma coisa negativa, associada a valores negativos e menores.
18. E, sinceramente, fico irritado com a forma como, desde sempre, quando se fala de tradução, há sempre esta construção, ficação, este discurso negativo, crítico e depreciativo que impera.
19. Não tenho procuração para defender os tradutores, meus pares. Sou apenas um profissional que está habituado a reconstruir com o discurso, aquilo que outros destroem com as suas palavras, actos, gestos... Sou, além disso, um formador que gosta de partilhar conhecimentos, competências e saberes com os seus alunos, dentro de uma perspectiva profissional e qualitativamente sustentada, baseada numa experiência de vida orientada para a prestação de um serviço que considero crucial, rigoroso e apaixonante.
20. Mas fico possesso quando nos envolvem nesta cadeia perversa, como se fôssemos os pobrezinhos, os parentes pobres, os néscios ou os coitadinhos que aspiram por um lugar ao sol, junto dos privilegiados e iluminados.
21. E fico furibundo quando nos afastam, ou somos afastados, dos processos de decisão e justificação, no fundo, quando nos cortam a palavra.
22. Este é, de facto, o espelho da realidade socioprofissional de uma actividade a que muitos chamam "tradução".
23. Há bons e maus tradutores, como há bons e maus médicos, ministros, professores, treinadores.
24. É lógico que há péssimos tradutores que se intitulam profissionais e que, com os seus actos, acabam por fazer tanto pela reputação da "classe" como o desgraçado e infeliz emigrante que teve o azar de estar no sítio errado, no momento errado.
25. Mas há excelentes tradutores que batalham todos os dias contra esse gente esclarecida que constrói Magalhães, elabora relatórios e contas, redige sentenças ou cartas rogatórias, fabrica prédios e centros comerciais ou legisla nos gabinetes.
26. Reparem que não falo só dos tradutores literários. Não me interessa aqui valorizar ou desvalorizar áreas e domínios de actividade. Falo sobretudo dessa multidão anónima que vive, tantas vezes, abaixo do nível das águas, no subsolo e no esquecimento, em total precariedade e ansiedade, que luta diariamente contra o anátema do desprestígio, desvalorização, subalternidade, inferioridade, palavras que são frequentemente lançadas, pela sociedade ou pelos clientes, para as costas do tradutor.
27. "Não gostei nada daquela tradução", "Era capaz de fazer melhor", "O tradutor não percebeu nada", "Não é assim que se diz", "Tive que mandar fazer tudo de novo", "É tão caro. O meu cão, que é bilíngue, fazia isso com uma perna às costas", "Tenho uma prima, que dá explicações e tem um curso de línguas, que me escreve os emails para os clientes de graça," etc, etc, são comentários que todos nos habituámos a ouvir.
28. O Magalhães é, portanto, e apenas, a metáfora da nossa existência.

Algures entre Sísifo e Tântalo, numa tensão constante entre o visível e invisível, somos, e sabemos ser, absolutamente indispensáveis, verdadeiro dínamo, roda motriz e elemento catalisador da sociedade e, no entanto, tristemente condenados a errar sem destino e sem lar, desenraizados e ostracizados por aqueles que nos acolhem e, ao mesmo tempo, nos apagam, muito convenientemente, através de uma simples tecla "Delete" (Apagar).

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