Friday, November 23, 2007

Para (re)pousar os sentidos



Ana Luísa Amaral
«Intertextualidades» (in Minha senhora de Quê, Lisboa, Quetzal, 1999, p. 24)

Microscópica quase,
uma migalha entre as folhas de um livro
que ando a ler.

Emprestaram-me o livro,
mas a migalha não.
No mistério mais essencial, ela surgiu-me recatadamente, a meio de dois parágrafos solenes.
Embaraçou-me o pensamento, quebrou-me o fio (já ténue) da leitura.
Sedutora, intrigante.

Fez-me pensar nos níveis que há de ler:
o assunto livro
e a migalha-assunto do leitor.

(era pão a matéria consumida no meio
de dois parágrafos e os olhos
consumidos: virar a folha, duas linhas lidas
a intriga do tempo quando foi
e levantou-se a preparar o pão
voltando a outras linhas)

Fiquei com a migalha,
desconhecida oferta do leitor,
mas por jogo ou consumo
deixei-lhe uma migalha minha,
não marca de água, mas de pão também:
um tema posterior a decifrar mais tarde
em posterior leitura
alheia.

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