Tuesday, January 03, 2006

Maldita língua que me turva o sentido

Pois é. Bloga que se faz tarde.
Ano novo, velhas manias. Tradição, tradução e, sobretudo, revisão, cada vez mais revisão. Os meus dias são um processo de revisão constante. A lápis, caneta, marcador ou em ambiente multimedia hiperventilado por um CPU ofegante. Revisão dos outros, revisão desse outro que se esconde no texto, numa reescrita constante. Track changes, detectar e registar alterações e comentar, anotar, pormenorizar, detalhar e classificar. Tudo com um olho clínico, para o qual não fui treinado, mas que cada vez me incomoda mais... Para o bem e para o mal, até que essa coisa nos separe. No bom sentido, é claro, espécie de "all seeing eye", omnipotente e omnipresente que me impele rumo a essa ânsia de tudo dissecar.
(Engraçado, mas nunca de mim... Essa revisão, entenda-se). Às vezes, (agora, por exemplo)apetecia-me era deitar-me no meu divã e rever-me a mim próprio, egoísta, reescrevendo-me e redescobrindo ou fixando as minhas trajectórias (ou os meus escritos, entenda-se, a propósito). No fundo, vendo-me do outro lado, ou então do mesmo lado, ou ainda do lado de cá, como se queira, sem efeitos, nem trejeitos. E, sobretudo, sem preconceitos.
Ah, e sempre esta necessidade de tudo perpetuar, prolongar o dito e o escrito, numa luta constante contra o esquecimento. Não esquecer: Pôr a escrita em dia. Com rigor, precisão e minúcia. Por isso, escreve, unifica, concretiza as tuas ideias, revisor amigo. Vê se dás uma nova sintaxe à tua vida. "Hammer your thoughts into unity", dizia o outro e com razão. Bate, rebate, martela, cinzela, burila e, sobretudo, parte, desfaz essa pedra em bruto (e às vezes tão bruta) que tu encontras pelo caminho. Eis chegado o momento de solidificar e concretizar. Criar a partir do nada. Ou, melhor dizendo, criar a partir de fragmentos aparentemente autónomos, ligados entre si por um ténue fio vital, fiel e condutor.. Por isso, tonifica e constrói de novo, a partir dos despojos e resíduos do teu ser (sólidos, sob a forma de palavras e de uma sintaxe quebrada), mas também emocionais, mentais, intelectuais e conceptuais, reconstruindo-te a ti próprio, mergulhado nessa manta de retalhos de emoções e sensações que cada novo texto desperta em ti.
Trabalho hercúleo esse de rever. A revisão é, para mim, uma das mais nobres artes e tambem uma das menos exploradas neste imenso processo a que damos o nome de tradução. E, por isso, também uma das mais esquecidas e negligenciadas. Razão tinha o Pedro Mexia nas suas habituais crónicas na Grande Reportagem.
Isto porque a revisão é também uma outra visão, ou uma nova visão: re-visão. E é assim que revisito os espaços e os momentos do outro, desse tradutor que me antecedeu. Mas também os seus escritos, já não a duas, mas sim a quatro ou a seis mãos. Ui, e às vezes são tantos. "Todos ao burro e o burro no chão", como diz o povo. Eu, revisor, ele, tradutor, e o autor, que grita e e gesticula, mortinho por chegar a casa. Ou a um porto seguro. Ou quem sabe, tão só, fazer-se entender. Comungar e partilhar do mesmo sentido e das mesmas ideias. Será assim tão difícil? "Entendam-me", grita ele desesperado, gesticulando do outro lado da página. São tantos os sentidos que se acumulam. É tanta a imensidão de referências e referentes. E as palavras que não ajudam. Às vezes, só parecem estorvar. E a língua que tudo complica. Sintaxe pesada, resistente, barroca, que se dobra e desdobra. Lixo? Desleixo? Estilo? Há tantas coisas que se escondem por detrás dos sinais mais óbvios. E, às vezes, as rectas que percorro para chegar a ti, já são curvas, turvas de sentido, sinuosas e frágeis, numa rota ébria que, inexplicavelmente, se desviou do seu destino por mãos pouco cuidadosas. Palavras tresmalhadas e sintaxe transviada. Trapalhadas e alhadas em que o revisor se mete. Difícil tarefa essa de emendar aquilo que já nasceu torto. Não por obra do autor, é claro (mas às vezes, e sobretudo dele). Velhas questões essas sobre o mau original e a boa ou má tradução. Sim, porque há outra vida para além da chamada tradução literária. E há outra vida para além da literatura. Essa é uma das minhas vidas, esse é um dos meios e meandros por onde me perco e onde tantas vezes me encontro com a satisfação única de um renascer. Prazer supremo de descobrir a simplicidade de um pensamento ou acção nas palavras dos outros e dizê-lo com toda a energia e vigor na minha própria língua, pelas minhas próprias palavras e, assim, cunhar uma ideia, sentido, emoção no espírito dos meus leitores...

1 comment:

M.M. said...

Olá, colega.
Bom ano novo para ti. Dá uma vista de olhos aos meus blogs, especialmente Pérolas da Tradução, talvez te interesse. Quem sabe se não poderás fazer parte da minha equipa de colaboradores.
Fica bem.