Saturday, April 11, 2009

Apologia da mui nobre, sempre leal e invicta llengua portugueza

Encontrei isto, nas arrumações lá de casa.

O 1º texto é um artigo de cariz sociológico, tentando desmontar o 2º (que é o que interessa, neste caso).

POLIVALÊNCIA... HÁ 70 ANOS
ELVIRA PEREIRA
Socióloga, Téc. Sup. Principal da Inspecção das Finanças

Actualmente, é comummente aceite o facto de quer os recursos humanos, quer as organizações, necessitarem de se conformar com os imperativos da flexibilidade, criatividade, versatilidade e adaptabilidade como condição sine qua non da sobrevivência.
Como poderá observar no pequeno texto que abaixo transcrevemos, pode-se inferir da não novidade daqueles princípios. Muitos agentes económicos foram, no seu tempo, inovadores, possuidores de um raro sentido das oportunidades e suficientemente flexíveis em ordem à adaptação necessária aos mais diversos contextos. Porém, é sempre possível fornecer exemplos caricaturais sobre essas mesmas qualidades.
Com a devida vénia, transcrevemos, na íntegra, um texto publicado no jornal Correio do Ribatejo. Trata-se da cópia de um prospecto que Manuel Ferreira, da vila da Sertã, mandou imprimir e distribuir há cerca de 70 anos.
Deste texto infere-se a extraordinária polivalência do signatário do anúncio, que vai desde "surgião" e "rigedor" a ensinante de "jiographia, aritmética, gimnástica e outras chinezisses", culminando com cantos e danças.
Diríamos que mais sábio que Newton só o Sr. Manuel Ferreira, desde que este dominasse com a mesma acuidade os instrumentos básicos de decifração cultural que tal abrangência requeria.
Difíceis tempos aqueles em que o tudo, pelos vistos, era quase nada ou pouca coisa.
Afinal, o que o anúncio revela é um simples exemplo da tão portuguesíssima "lei do desenrascanço". Hoje, por razões diferentes, aos jovens coloca-se cada vez mais o problema da formação abrangente e recorrente, da oportunidade, da flexibilização e da adaptação à nova rdem do trabalho.
Aqui para nós, quando acabamos de 1er o anúncio, a nossa reacção sintetiza-se aproximadamente no seguinte comentário:
Eh pá, vai fazer "surgias" para a tua rua!



EU, MANUEL FERREIRA, SURGIÃO

Eu, Manuel Ferreira, surgião, rigedor, comerciante e agente de enterros.
Respeitosamente informa as senhoras e cavalheiros que lhes tira dentes sem esperar um minuto, apelica cataplasmas e salapismos a baixo preço e vixas e 20 reis cada, garantidas.
Vende pelumas, cordas, corta calos, juanetos, aços partidos, tusquia burros uma vez por mes, e trata de unhas ao ano. Amolla facas e tizoiras, apitos a 10 reis, castiçais, fregideiras, e outros instrumentos musicais a preços reduzidos. Ensina gramática e discursos de maneiras finas, acim como cathecysmo e orctographia, cantos e danças, jogos de sociedades e bordados. Perfumes de todas as qualidades. Como os tempos vão maus, pesso lecença para dezer que comessei também a vender galinhas, lans, porcos e outra criação. Camisolas, lenços, ratueiras, enchadas, pás, pregos, tejolos, carnes, chourissos e outras ferramentas de jardim e lavoira, cigarros, pitrol, aguardente e outros materiais inflamáveis. Hortalissas, frutas, músicas, lavatoiros, pedras de amolar, sementes e loiças, e manteiga de vaca e de porco.
Tenho um grande curtimento de tapetes, cerveja, velas e phosphoros, e outras conservas como tintas, sabão, vinagre, compro e vendo trapos velhos, chumbo e latão. Ovos frescos meus, páçaros de canto, como moxos, jumentos, piruns, grilos e depósito de vinhos da minha lavra. Tualhas, cobertores e todas as qualidades de roupa. Ensino jiographia, aritmética, gimnástica e outras chinezisses.


(Publicado no Jornal Correio do Ribatejo, há cerca de 70 anos)

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