Não posso deixar de postar aqui este fantástico e divertido texto de Peter Naumann, onde as questões de vocação, ética, discrição, respeito e dignidade profissionais andam interligadas. Transpondo isto para a tradução, não será por isto que todos nós lutamos, no nosso dia-a-dia e na forma como nos relacionamos profissionalmente, com os nossos pares e clientes? Não será por isto que todos nós aspiramos? Sonhar, ainda que fugazmente, por uma invisibilidade visível... um raio de luz na sombra do esquecimento.
NA CONTRAMÃO DE BABEL: VARIAÇÕES, CON ALCUNE LICENZE, SOBRE UM TEMA POUCO CONHECIDO
Peter Naumann*) para George Bernard Sperber, pelo seu 60º aniversário
1. Um lugar-comum afirma que o intérprete deve saber colocar-se entre parênteses. Colegas de profissão, que o sustentam, muitas vezes não possuem autoridade intelectual para fazê-lo. Contrariamente à imagem muito difundida, sobretudo entre organizadores de congressos, o intérprete autêntico não se confunde com a socialite, a secretária ou a recepcionista alegadamente poliglotas nem com o guia turístico, que mal encobrem a sua indigência com charme mercenário, frases feitas, vocabulário parco e ideário correspondentemente acanhado. Embora o perfil profissional evolua cada vez mais nessa direção, o bom intérprete deve ter luz própria e saber falar por si. Deve ter o que dizer. Não fosse assim, o que lhe restaria para colocar entre parênteses?
2. Muitos leigos e muitos futuros profissionais pensam e agem como se o intérprete fosse o especialista a inserir a palavra certa no lugar certo no momento certo. E há mesmo intérpretes que partilham essa opinião, a julgar pelo seu desempenho. Tal compreensão ignora a natureza e o funcionamento da linguagem humana, que não é algébrica, mas analógica. A compreensão ou, na sua impossibilidade, intuição do contexto é condição necessária da compreensão do texto. Em tempos nem tão remotos, marcados por menos dúvidas, o catolicismo romano acreditava poder afirmar: Extra ecclesiam nulla salus. Com muito mais razão um intérprete propenso à reflexão – que procura, também, sempre pensar à frente dos seus oradores - pode afirmar: Extra contextum nulla salus. Uma segunda condição necessária é o acompanhamento do raciocínio do orador. Sem ele, o intérprete não pode fazer suas as palavras do orador, e sem isso ele não consegue transmitir o sentido do que o orador disse.
Interpretar significa compreender. Nada mais. Nada menos.
3. Em passagem secundária, mas certamente não fortuita do pouco conhecido romance Salammbo de Gustave Flaubert os intérpretes são apresentados nas seguintes palavras: Apparaissait ensuite la légion des Interprètes, coiffés comme des sphinx, et portant un perroquet tatoué sur la poitrine. (Flaubert, Salammbo. Oeuvres, Ed. de la Pléiade, I, 761)
No fim do nosso século, as chances do papagaio de ser reconhecido como ave heráldica da profissão não são nada más. Afinal de contas, os sons captados através dos fones de ouvido são muitas vezes deveras enigmáticos.
4. Na sua memorável reportagem literária de 1928 sobre a migração dos judeus do Leste Europeu para o Ocidente, o escritor e jornalista austríaco Joseph Roth (1894-1939) registra a chegada dos judeus ao porto de Marselha, parada obrigatória na emigração para outros continentes, especialmente para a América do Sul:
"Alguns poucos ficam em Marselha. Tornam-se intérpretes. Ser intérprete é uma profissão judaica. Não se trata de traduzir, do inglês para o francês, do russo para o francês, do alemão para o francês. Trata-se de traduzir o forasteiro/o estranho [den Fremden], mesmo quando ele não disse nada. Ele não pre-cisa abrir a boca. Intérpretes cristãos talvez traduzam; judeus adivinham [Juden auf Wanderschaft]."
A diáspora predispõe não apenas ao aprendizado de línguas, mas ao desenvolvimento paranormal da faculdade humana de apreender o que está atrás das palavras que ora revelam, ora ocultam o pensamento. Trata-se de uma habilidade social, necessária à sobrevivência de quem é percebido como diferente.
Sôbolos rios que vão por Babilonia (Camões) nasceram alguns dos melhores intérpretes que o mundo já viu - como o destinatário dessas reflexões, que veio de muito longe e criou entre nós um padrão de qualidade quase nunca alcançado na interpretação entre o português e o alemão, inexistente na própria Alemanha, alheio às vestalinas regras das corporativistas associações profissionais e ocasionalmente admirado por colegas de peregrina importância que se deslumbram com o que lhes é vedado compreender.
5. Uma prova insofismável da capacidade intelectual do intérprete de conferências é o seu desempenho na modalidade consecutiva, na qual trechos mais ou menos extensos do discurso são posteriormente reproduzidos pelo intérprete. Nos últimos anos aumenta o número de profissionais que se esquivam a trabalhar nessa modalidade. Admitem tacitamente que a sua percepção do que o orador diz não passa de ruído destituído de sentido. Seu próprio discurso acaba resultando em ruídos destituídos de sentido. Na modalidade simultânea, mais praticada, o intérprete, símio (não símile) do orador, pode enganar mais facilmente, tomando carona nas palavras deste sem conseguir reorganizá-las em fala articulada. Em terra de cegos, o desempenho subalterno daí resultante é desculpado, sob a alegação da “dificuldade” do trabalho.
6. São Jerônimo (348?-420?), padroeiro dos tradutores e, por extensão, dos intérpretes, escreveu um pequeno tratado De optimo genere interpretandi, no qual se lê a seguinte definição canônica do que o bom tradutor e intérprete devem fazer: Non verbum e verbo, sed sensum exprimere de sensu (Não expressar a palavra a partir da palavra, mas o sentido a partir do sentido).
7. Verba volant... Volátil por natureza, a palavra falada carece de repetições para ser compreendida. Mesmo pleonasmos inadmissíveis na linguagem escrita podem ser elementos de estruturação do discurso falado. Nos últimos anos fala-se cada vez menos e lê-se cada vez mais em eventos que demandam o concurso de intérpretes. Muitos oradores já não conhecem mais a diferença entre falar e escrever. Apresentam textos formulados na solidão do gabinete, expurgados de todos os elementos que tornam a fala compreensível. Ao invés de reoralizá-los, descartam-nos em tom monocórdio, sintoma da fala não-assistida pelo raciocínio.
8. A interpretação de conferências tem muitos pressupostos. Enunciemos aqui dois de importância capital, pouco conscientizados:
1. O orador está de plena posse das suas faculdades mentais.
2. O orador conhece o seu assunto.
Satisfeitas essas premissas, o intérprete pode esperar que o discurso que ele ouve tenha nexo. Sem nexo, a memorização, função da apropriação das idéias do orador, nem seria possível.
9. Só o mau intérprete chama a atenção do público.
10. Interpreters are born, not made. Analisada mais de perto e compreendida na sua verdade relativa, a afirmação de Renée van Hoof nos diz também que a interpretação não é uma mera profissão (Beruf), mas uma vocação (Berufung). O termo vocação deve ser tomado na sua acepção secularizada. Remete à situação histórico-biográfica do intérprete, à noção de uma herança assumida. Assim compreendida, a interpretação de conferências pode ser uma forma de vida.
29.05.1998
*) Intérprete de conferências.
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