Vou ser sincero. Detesto críticas e maledicências. Detesto a má-língua e o cinismo. Irrita-me o habitual dizer mal pelo prazer de estar do contra. Tão nacional e tão parcial. Detesto essa rede de censores encapotados que, de caneta ou lápis em riste, logo começam à procura do erro fácil, da gralha e da asneira, mal abrem um livro, um manual ou um jornal. Detesto o excesso de zelo de alguns amanuenses de segunda, obcecados com essa caça à multa doentia e estéril, anotando e classificando resmas e pilhas de erros. Preocupa-me o efeito a la “big brother” de tudo ver e tudo controlar que assola o mundo da tradução. Detesto esses abutres cobardes que dilaceram o texto e se refastelam com o azar alheio, disputando as migalhas como despojos de guerra. Irrita-me a forma vil e repugnante como troçam da incompetência alheia e se comprazem perante os seus infortúnios. E choca-me a forma despudorada como comentam a desgraça alheia no alto da sua cátedra. Irrita-me a hipocrisia e a desresponsabilização. Track changes, view changes, accept changes, reject change e delete comment. Track changes, view changes, accept changes, reject change e delete comment. E vice-versa, num vício aberto e descontrolado. E odeio, sobretudo, as tricas, as trocas, as baldrocas e as intrigas do mundo da tradução. Detesto abrir o jornal e, de imediato, ler críticas negativas acerca do trabalho dos meus colegas. Irrita-me a Internet vomitando sites e mais sites cheios de listas tipo best off ou top ten dos erros mais comuns e risíveis. Detesto o bota-abaixo tradicional de quem lê uma legenda de um filme e logo aponta, de dedo em riste, qual mestre-escola, que fulano de tal meteu água aqui e ali, que sicrano traduziu isto, quando devia traduzir aquilo, que beltrano é um ignorante e uma besta quadrada só porque omitiu aquela importantíssima referência cultural. Espírito queixinhas este, responsável pela realização de verdadeiros autos de fé encenados para fascínio da santa nação imaculada. Mentalidade tacanha esta, herdeira de práticas pedagógicas de antanho, onde os incompetentes e os nabos eram colocados no fundo da sala, ou frente à turma, de orelhas de burro na cabeça, para gáudio de todos. A galhofa habitual, a troça do costume. Detesto a falta de humildade, a falta de cumplicidade e a falta de escrúpulos de alguns. Irrita-me a concorrência desleal e a falta de solidariedade. Preocupa-me a falta de espírito corporativo e a ausência de honestidade intelectual no ajuizar do próximo. Preocupa-me a falta de entreajuda e o isolamento a que os tradutores são diariamente votados pelo público em geral e, sobretudo, pelos seus pares. Mas onde está a tolerância e o bom senso?
Detesto os pequenos prazeres mesquinhos de dizer mal do próximo e essa incómoda mania de criticar pelo simples desejo de criticar, como se fosse um hobby nacional. Ah, como eu adoro estes amigos do alheio, cujo seu único e exclusivo limite é o próprio umbigo. Pressinto bem o que os move. A obsessão de dizer coisas da boca para fora, só para não ficar calado. Como dizia uma prima minha “Ó menino, quando estás calado, tu pareces mesmo um doutor.”
Mas porque não se calam. Mas porque insistem em falar daquilo que não sabem. Mas, se calhar, o problema é que sabem. E bem…
Pequeno comentário acessório ao exposto, para que conste nos registos: Compreendo tudo isso e, de certa forma, até percebo o seu alcance e utilidade. Também eu cometi os meus desleixos e também eu fiz as minhas críticas. Ou seja, também eu fui dos que atirei a minha pedra. E também eu fui daqueles que apanhei com a dita pedra, mais ou menos a modo de ricochete politicamente (in)correcto. Por isso, sou o primeiro a dar a mão à palmatória. Mas o que é de mais é moléstia. E, para além disso, já é tempo de crescer e de ocupar a mente com outras coisas.
Ora vejamos.
Errar é humano. Primeira verdade de La Palisse.
Os tradutores são humanos (pelo menos, para já, e esperemos por muitos e longos anos). Segunda verdade de La Palisse
Logo, por exclusão de partes… (para bom entendedor…)
Todos sabemos que a tradução é uma das profissões mais expostas e vulneráveis do mundo. Sabemos, porque nos confrontamos diariamente com o produto do nosso próprio trabalho. Sabemos, porque, através da tradução, nos deparamos constantemente com a nossa própria insatisfação pessoal, como humanos que somos e seres falíveis que seremos. Estamos condenados a isso, e é esse o nosso desígnio. Sabemos, porque estamos constantemente em fluxo e em trânsito entre espaços e momentos, a trabalhar na corda-bamba. Sabemos, porque, no fundo, somos artistas de um número de equilibrismo, trabalhando num trapézio sem rede, onde a queda pode ser (e é) fatal. Sabemos, porque somos obrigados a trabalhar sob pressão, cedendo a interesses externos que não são os nossos. Sabemos, porque estamos habituados a dar prioridade aos nossos clientes, anulando-nos como indivíduos e fazendo concessões atrás de concessões. Sabemos, porque somos escravos do nosso trabalho. Sabemos, porque vamos perdendo a nossa identidade. Sabemos, porque não temos horas, nem prazos, nem fins-de-semana, nem vida própria. A vida para nós é uma sucessão de dias, semanas e meses que se atropelam em catadupa, numa espiral de compromissos e tarefas infindáveis. Sabemos, porque estamos a ficar cada vez mais mecanizados, informatizados, rotinizados, globalizados, desumanizados. Enfim, cansados. Sabemos, porque estamos a ficar viciados no erro e porque identificamos o erro, sim senhor, mas não a causa desse erro. Sabemos, porque o erro entra na nossa vida como uma migalha numa engrenagem, e logo paramos, em avaria técnica. Sabemos, porque nos apercebemos do erro, mas nem sempre o sabemos classificar, catalogar, descrever e, por isso, somos incapazes de o corrigir adequadamente. Sabemos, porque vivemos e respiramos tradução. O nosso corpo é tradução e os contornos da nossa vida confundem-se com os limites do próprio texto. Sabemos, porque a língua é fraca e volátil e volúvel e traiçoeira como o canto da sereia. Sabemos, porque o perigo e o risco nos atraem. Sabemos, porque a viagem é perigosa e turbulenta. Sabemos, porque navegamos as águas agitadas da inconstância e incerteza e porque estamos habituados a lutar contra tudo e todos, transformando a nossa fraquezas em forças de resistência. Sabemos, porque, às vezes, vagueamos às escuras, tacteando sentidos com as nossas mãos, perdidos num qualquer labirinto. Sabemos, porque viajamos ao sabor das marés, contra ventos e tempestades, tantas vezes à deriva, em busca de um porto de abrigo tão distante e às vezes tão próximo, e tantas vezes cruel ou enganador.
Sabemos, porque não somos reconhecidos enquanto profissão. Sabemos, porque não nos conseguimos definir como profissionais de pleno direito. Sabemos, porque não temos direitos, apenas deveres e obrigações. Sabemos, porque somos cidadãos anónimos, empurrados para este ofício pelas contingências do destino e pelo espartilho burocrático que nos empurra para a periferia. Sabemos, porque estamos constantemente em bicos de pés, acenando para que nos vejam.
E, no entanto, são os nossos irmãos que nos apunhalam, que nos denunciam e que mais nos expõem.
Triste sina esta, convenhamos.
Já era tempo de reflectirmos um pouco sobre o nosso papel na sociedade. Já era tempo de crescermos e assumirmos alguma maturidade e consistência profissional. Já era tempo, no fundo, de fazermos uma profunda auto-reflexão e auto-crítica sobre o nosso posicionamento nesta actividade tão nobre e complexa. Onde estamos? O que somos? Para onde vamos?
E com isto termino.
(Desculpem-me, mas estava mesmo a precisar de desabafar…)
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1 comment:
"Sabemos, porque, através da tradução, nos deparamos constantemente com a nossa própria insatisfação pessoal, como humanos que somos e seres falíveis que seremos. Estamos condenados a isso, e é esse o nosso desígnio. Sabemos, porque estamos constantemente em fluxo e em trânsito entre espaços e momentos, a trabalhar na corda-bamba. Sabemos, porque, no fundo, somos artistas de um número de equilibrismo, trabalhando num trapézio sem rede, onde a queda pode ser (e é) fatal."
Gostei especialmente deste bocado, mas gostei imenso do teu texto em geral.
Concordo com muito do que dizes. A tradução é um mundo cão, e ninguém ajuda ninguém, não há qualquer tipo de solidariedade. Mas nada nos impede de, tal como fizeste aqui e muito bem, deitar cá para fora as frustrações que sentimos. A minha, por vezes, prende-se com o facto de haver pessoas a serem remuneradas para fazerem um trabalho que desconhecem. E não me refiro a pequenos erros, enganos, etc. Estando no mundo da tradução, todos sabemos que é fácil cometer certos erros.
Afinal, não somos máquinas, apesar desta profissão nos tratar como tal.
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